Castanha



Não é possível ser infeliz ouvindo música mineira. Ninguém consegue escrever textos com qualquer indelicadeza enquanto ouve Milton, Toninho, Drummond, e tantos outros.

Eu queria ter nascido numa montanha verde. Quisera ter negros brilhantes a minha volta, e tropeçar entre os loucos que deitam nas ruas em Barbacena.

Ter morado na esquina do clube, olhar a rua de cima do meu portão de ferro gelado sob meus braços, enquanto um saxofone longe toca bonito e uma senhora enrugada me cumprimenta ao passar.

Eu teria belos vestidos cor de terra, cabelos longos e um olho de cada tom de castanho olhando o tempo fazer suas contas. Escreveria poesias que nunca mostraria a ninguém, em um caderno bege.

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Trilha Sonora: http://umquetenha.blogspot.com/2008/11/coletnea-brasileirssima-msica-de-minas_20.html

Estradas

Eu sempre morei do lado da pista. Talvez seja por isso que tenho tanta vontade sair do lugar onde estou, sempre.

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Eu gostava de literatura fantástica. Os autores inventando estradas imensas onde passeavam seus personagens mais estranhos. Sempre indo embora.

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Ave Maria cheia de graça, o senhor é convosco. Ave Maria cheia de graça....AVE! A garota solta o terço na cadeira, abre a pesada porta de madeira, e sai. Sente o sol amarelo fraco, e apressa o passo. Chega num trote em casa. Ué, filha,acabou o catecismo? Acabou, mãe, de vez.

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Mas, você não tem medo de ir pra esta cidade que nunca viu? Não, eu tenho medo de ficar onde sempre estive.

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O trabalho era monótono, cheio de dias imensos. Ao meu lado, uma piscina azul tomava o pátio. Da minha janela, podia ver o limpador de piscinas, e invejava seu trabalho no sol, brincando com água. A cada dois minutos minha imaginação fugia da tela do computador, e ficava azul.

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Ficar bem onde estou. Ficar bem em mim. Saber quem eu sou. Tantas tarefas...bom mesmo seria pegar um ônibus para o Chile.

Sono



Fiquei muito tempo sem te ver. Creio que foram anos. Um dia, branca e estrangeira, cheguei num lugar agitado e te vi num canto fumando. Você estava bonito, cabelos grandes, bem maiores do que da última vez que lhe vi. Mas você estava triste. Estava tão triste, que não conseguiu mentir rosto feliz quando me viu. Deu um sorriso amarelo com fumaça entre os dentes. Acenei.

Pouco tempo depois, te encontrei lá fora, tentando ir embora sozinho. Estava escuro, fui lhe falar, você não respondia direito. Insisti em te acompanhar, instinto de cuidado ainda preservado. Você recusou. Te segui de longe durante parte do caminho, quando você desistiu e sentou na grama, exatamente como da primeira vez que te vi. Só que não estava tranquilo como antes. Uma pessoa muito querida tinha lhe deixado, e tua dor era sincera. A minha, em te ver assim, também.

Fui até sua casa, nossa antiga casa, e te coloquei na cama. Meu colchão ainda estava ali embaixo. Os cães ainda me reconheciam. Dormimos.

No dia seguinte, te fiz fazer coisas bobas. Andar pelo bairro, olhar arquiteturas bonitas, pegar mexericas no quintal, varrer o chão, fumar cigarros na janela.

À noite, quando quis ir a mais uma festa para se despedir dela e de você, te impedi delicamente, acompanhando você. Te sentei no mesmo bar, pedi as mesmas cervejas e te ouvi falar dela por horas. Paguei a conta e saímos. Você estava chateado, e se irritou muito quando as primeiras gotas caíram do céu. Andou mais rápido. Deu falta de mim. Ao parar para olhar pra trás, me viu maravilhada olhando para cima, sentindo a chuva no rosto, e rindo mais alto ao vê-la aumentar.

Nada é tão ruim que uma boa chuva de madrugada não seja capaz de curar. Fomos para casa, molhados e sem graça, tiramos as roupas e dormimos um sono de anos.