Partidas



Eu tive dois avós de mesmo nome. João e João. Os dois nascidos em fazendas no interior, netos de italianos. Um alto, forte, moreno cor de chocolate, e quieto. São Paulino. Outro branco cor de rosa, claríssimos olhos azuis, careca, e falante. Palmeirense.

Os dois trabalharam pesado em fábricas quando moraram em São Paulo. Nunca tive tempo de perguntar o que faziam lá. Os dois me davam doces quando me viam. João trazia suspiros, bolachas e refrigerantes. O outro João me oferecia rapadura e doce de leite. O lugar preferido de um era a mesinha de sua cozinha e os consultórios médicos. O do outro, sua cadeira na varanda e os campos de bocha. Os dois, amantes dos pequenos bares de bairro, para irritação de toda a família.

Um teve três filhos, sendo um deles, o caçula, meu pai. O outro teve cinco filhos. A do meio, minha mãe. Sem os dois, eu não seria esta teimosa que sou, nem gostaria tanto de cana-de-açúcar. Não teria me tornado socióloga rural. Não saberia que é possível aprender a andar de bicicleta aos setenta anos, ou que é existem pessoas que nunca tinham visitado um médico na vida - porque nunca havia sido preciso.

Há um ano exato, vô Zico partia sem avisar, sem chance alguma de despedida. Porém, conseguiu reunir a família toda ao redor do seu caixão, para selar uma paz há tempos reclamada por todos. Ele me fez encarar a mortalidade de todos que amo, pela primeira vez na vida.

Uma semana atrás, vô Joâo reuniu a família inteira ao seu redor dentro de um hospital, para preparar sua partida. Apertou minhas mãos e as mãos de cada um, sem soltar, por horas. Ele me deixou aprender como é ter uma família unida na pior hora, e como é importante ter tanta gente cuidando de nós. Me fez ver também que somos mais fortes do que imaginamos, e mais frágeis do que pensamos possível. Resolveu partir ontem, no dia de aniversário de morte do outro avô que tive.

Ficamos nós, cada vez mais mulheres, e mais unidas.

Santa Rosa



Não faço a menor idéia que santa é Santa Rosa. Nunca fui muitos ligada aos santos. Porém, sempre fui muito ligada à cidade de onde vim.

Aqui, ficaram todos os meus parentes mais antigos, todas as raízes, todas as pessoas que me conhecem desde que nasci. Foi aqui minha primeira casa. Meu primeiro vestido.

Hoje a vida está ao contrário. Estamos começando a perder as pessoas mais antigas. Aos poucos, sei que todos irão. Mas, mesmo assim, não é tranquilo dizer adeus a tudo que fomos.

Quando veio para cá, vejo o sentido de ter família grande. Serve para as enormes festas que damos, e para os momentos ruins que vivemos serem menos péssimos, e mais acolhedores. Afinal, tudo que é ruim, é melhor se compartilhado por tanta gente.

Maçãs



Cada tempero era uma dança. O rapaz flutuava entre as panelas em meio ao cominho, sal, cebola e água nos olhos. A cozinha tinha uma profusão de tampas nas paredes. Bules manchados de café, panelas enormes, outras bem pequenas, frigideiras e talheres de pau. Lembrei de Jorge Amado e sua Dona Flor. Vadinho comia cebola pra ficar com gosto ardido e beijo forte.

- Como será que é morder cebola como se fosse maçã?
- Eu, flor?

O menino andava pra lá e pra cá. Pegou uma panela grande, usada. Abriu a torneira d´água e lavou o alumínio, sujando um pouco a blusa. Lembrei dele no rio, respingado de água enlameada. Acendeu o fogo ralo e botou água pra ferver. Ia demorar.

Fui procurar temperos pra este macarrão. A negra dona da pousada estava lá fora, fuçando no quintal. Puxei conversa. Isso aqui, é manjericão? Eita que não, moça, é louro. Ria de mim. Sabe há quanto tempo moro aqui? Desde que nasci.

Cruzamos juntas a cozinha, a mulher ressabiada olhou pro moço que dançava procurando tampas. Homem sabe lá o que está fazendo... resmungou olhando pro chão e entrando cortina adentro.

A água fervente já estava cheia de massa. O macarrão ia amolecendo na panela. Eu debruçada na mesa cuidava para não perder o momento que, depois de colocar o sal e os temperos, o rapaz iria mexer o molho vermelho de tomates com a colher de madeira e levá-la à boca. Boca de homem que cozinha é vermelha, substanciosa, ardida. É a boca do melhor beijo que existe.

- Quer ajuda não? - dizia eu, mais mole que o macarrão na panela.

Ele só sorria e eu obedecia cheia de saliva na boca e colorido nos olhos.

DESEJOS....


Passar no Mestrado.


Ir pra Buenos Aires.


Ser paga pra ler.


Conhecer a Chapada Diamantina.


Passar um dia na biblioteca de Praga.


Tomar um café em Paris.


Morar um tempo no Rio de Janeiro.

LIMITES



Relato do Profº Pablo Ortellado (EACH-USP) sobre a barbárie ocorrida na Cidade Universitária da USP.

O seguinte relato nos foi enviado pelo professor Pablo Ortellado, da EACH-USP, em mensagem encaminhada pelo professor Marcelo Modesto (FFLCH), também presente na manifestação pacífica que resultou em confronto violento na Cidade Universitária da Universidade de São Paulo - USP.

Abaixo, partes do texto:

Urgente e importante: tropa de choque na USP


Hoje, as associações de funcionários, estudantes e professores haviam deliberado por uma manifestação em frente à reitoria. A manifestação, que eu presenciei, foi completamente pacífica. Depois, as organizações de funcionários e estudantes saíram em passeata para o portão 1 para repudiar a presença da polícia do campus. Embora a Adusp não tivesse aderido a essa manifestação, eu, individualmente, a acompanhei para presenciar os fatos que, a essa altura, já se anunciavam. Os estudantes e funcionários chegaram ao portão 1 e ficaram cara a cara com os policiais militares, na altura da avenida Alvarenga. Houve as palavras de ordem usuais dos sindicatos contra a presença da polícia e xingamentos mais ou menos espontâneos por parte dos manifestantes. Estimo cerca de 1200 pessoas nesta manifestação.

Nesta altura, saí da manifestação, porque se iniciava assembléia dos docentes da USP que seria realizada no prédio da História/ Geografia. No decorrer da assembléia, chegaram relatos que a tropa de choque havia agredido os estudantes e funcionários e que se iniciava um tumulto de grandes proporções. A assembléia foi suspensa e saímos para o estacionamento e descemos as escadas que dão para a avenida Luciano Gualberto para ver o que estava acontecendo. Quando chegamos na altura do gramado, havia uma multidão de centenas de pessoas, a maioria estudantes correndo e a tropa de choque avançando e lançando bombas de concusão (falsamente chamadas de "efeito moral" porque soltam estilhaços e machucam bastante) e de gás lacrimogêneo. A multidão subiu correndo até o prédio da História/ Geografia, onde a assembléia havia sido interrompida e começou a chover bombas no estacionamento e entrada do prédio (mais ou menos em frente à lanchonete e entrada das rampas).

Sentimos um cheiro forte de gás lacrimogêneo e dezenas de nossos colegas começaram a passar mal devido aos efeitos do gás – lembro da professora Graziela, do professor Thomás, do professor Alessandro Soares, do professor Cogiolla, do professor Jorge Machado e da professora Lizete todos com os olhos inchados e vermelhos e tontos pelo efeito do gás. A multidão de cerca de 400 ou 500 pessoas ficou acuada neste edifício cercada pela polícia e 4 helicópteros. O clima era de pânico. Durante cerca de uma hora, pelo menos, se ouviu a explosão de bombas e o cheiro de gás invadia o prédio. Depois de uma tensão que parecia infinita, recebemos notícia que um pequeno grupo havia conseguido conversar com o chefe da tropa e persuadido de recuar. Neste momento, também, os estudantes no meio de um grande tumulto haviam conseguido fazer uma pequena assembléia de umas 200 pessoas (todas as outras dispersas e em pânico) e deliberado descer até o gramado (para fazer uma assembléia mais organizada). Neste momento, recebi notícia que meu colega Thomás Haddad havia descido até a reitoria para pedir bom senso ao chefe da tropa e foi recebido com gás de pimenta e passava muito mal. Ele estava na sede da Adusp se recuperando.

Durante a espera infinita no pátio da História, os relatos de agressões se multiplicavam. Escutei que a diretoria do Sintusp foi presa de maneira completamente arbitrária e vi vários estudantes que haviam sido espancados ou se machucado com as bombas de concusão (inclusive meu colega, professor Jorge Machado).

Escutei relato de pelo menos três professores que tentaram mediar o conflito e foram agredidos. Na sede da Adusp, soube, por meio do relato de uma professora da TO que chegou cedo ao hospital que pelo menos dois estudantes e um funcionário haviam sido feridos. Dois colegas subiram lá agora há pouco (por volta das 7 e meia) e tiveram a entrada barrada – os seguranças não deixavam ninguém entrar e nenhum funcionário podia dar qualquer informação. Uma outra delegação de professores foi ao 93o DP para ver quantas pessoas haviam sido presas. A informação incompleta que recebo até agora é que dois funcionários do Sintusp foram presos – mas escutei relatos de primeira pessoa de que haveria mais presos.

A situação, agora, é de aparente tranquilidade. Há uma assembléia de professores que se reuniu novamente na História e estou indo para lá. A situação é gravíssima. Hoje me envergonho da nossa universidade ser dirigida por uma reitora que, alertada dos riscos (eu mesmo a alertei em reunião na última sexta-feira), autorizou que essa barbárie acontecesse num campus universitário.

Estou cercado de colegas que estão chocados com a omissão da reitora. Na minha opinião, se a comunidade acadêmica não se mobilizar diante desses fatos gravíssimos, que atentam contra o diálogo, o bom senso e a liberdade de pensamento e ação, não sei mais.

Por favor, se acharem necessário, reenviem esse relato a quem julgarem que é conveniente.

Cordialmente,

Prof. Dr. Pablo Ortellado
Escola de Artes, Ciências e Humanidades
Universidade de São Paulo

Outros lugares

Já avisei, mas só pra constar: o pessoal do Jornalirismo liberou geral! Publicaram um texto meu por lá.

O site já está linkado ali embaixo faz tempo (checa só que é o título do meu texto que aparece no feed!), mas não deixo de recomendar de novo. É bom de ler (o site).

O texto está assinado "Doria Darcie", e já foi publicado aqui antes.

Eu fiquei felizona.

http://jornalirismo.terra.com.br/literatura