Recomendação



Vindo para o Rio, meu ônibus foi parado pela polícia federal. Entraram, lanternas e fuzis. No banco ao lado, o único homem negro do ônibus foi também o único a ser completamente revistado e ter as bolsas todas abertas. A mim, o policial delicadamente disse: faça uma boa viagem, senhorita.

O Rio é, depois da Bahia, o lugar mais negro onde já estive. Vir pra cá é sempre se perguntar: afinal, por que diabos, o racismo tão intimamente entranhado, e tão escandalosamente exposto nas batidas policiais, é tão auspiciosamente negado por todos? Como é que temos a coragem de falar em democracia racial? Eu tenho vergonha desta forma de se pensar o meu país. Democracia o caralho.

E vindo pra cá também me lembrei que algum juiz de merda cancelou as cotas aqui no Rio, única política que de alguma forma conseguiu trazer à pra discussão a maior das feridas "da psiquê nacional" - como bem afirma o querido Alex.

Como ele trabalha muito bem com este tema, recomendo imensamente a série de artigos sobre racismo do site do Alex. Ah, e recomendo também a leitura dos comentários, que infelizmente comprovam todas as teses do dono do site e são a maior prova de que sim, precisamos das cotas, e não só nas universidades.

Boa leitura.

Série Racismo do LLL

Rio

Esta cidade me traz uma tranquilidade de se estranhar. Este monte de verde, montanhas e esta bagunça toda, as casa e prédios velhos, os morros tomados por casinhas, o samba sempre tocando na rua. Bons amigos em cinco minutos e cervejas demais.

É gozado que, diante de um povo tão interessante, tão fácil, chega a dar uma certa inveja...poxa, não sou carioca!

Acho que viver em São Paulo me endureceu, criei casca, aprendi a fazer um ar blasé. O Rio me amolece, me sinto sorrindo demais, as bochechas doem. Você vê que mesmo diante desta confusão, tanta gente vive tão feliz aqui. Eles parecem não ter vergonha de serem mais leves, e a gente acaba ficando mais maleável, mais tolerante, mais confortável, mesmo quando tem um fuzil na tua frente e acorda com tiros de metralhadora de madrugada. A vida dura também nos torna mais flexíveis.

O Rio de Janeiro está na minha lista de cidades onde preciso morar um tempo.

Deixa eu ir, que tem samba no Ouvidor.

Pastel com sol



Sentia o sol bater em seu rosto, mas os olhos teimavam em não abrir. Seu corpo pesava pelo menos sete toneladas. Se esquecera de fechar a veneziana no dia anterior e aquela claridade ardia um pouco. Parecia que tinha sido atropelada. Forçou os olhos a abrirem, a cabeça doía um pouco. Levantou a cabeça devagar, lembrou-se das bebidas da noite anterior. Levou alguns segundos até conseguir se mexer novamente. Sentou-se na cama e percebeu que tinha alguém ao seu lado.

- Ah, o moreno bonito das bebidas e da loira.

Como era mesmo seu nome?

- Bonita bunda, pensou alto.

Na noite anterior, entediada, sentara-se num sofá no andar de cima para não falar com ninguém. Tinha passado um pouco da conta e mal conseguia acender um cigarro. O casal ao lado estava enlouquecido, se agarrando feito bicho. Do seu lugarzinho no sofá, passou a observá-los. O rapaz era alto e tinha um cabelo bem cortado. Aposto que tem boca bonita, lhe ocorreu. O rapaz engolia a moça e dela só se podiam ver uns cabelos tingidos compridos. Olhou bastante pros dois, medindo o casal. Quem seriam? Namorados? Amigos? Vai saber...Bateu o copo na mesa de centro e se jogou pra trás.

O boca bonita largou a loira por alguns instantes. Acendeu um cigarro, e serviu mais bebida. Para os três.

- Saúde, disse.
- Muito bem, respondeu. Obrigada.

E voltou para os beijos com a sem rosto. Continuou sendo observado, nossa personagem bastante interessada no relacionamento dos dois no sofá já era meio indiscreta.

- Que foi?, perguntou ele.
- Você tem uma boca bonita. E beija bonito. Tô olhando, ué.
- Quem é essa?, a loira.
- Você gostou?
- Gostei.
- Então por que não me beija?

O rapaz realmente beijava bonito demais. Beijando a morena, conseguiu um olhar bizarro da tingida, que se levantou do sofá na hora.

- Que diabos é isso? Porra, você tá pensando que eu sou o quê? Seu idiota!
- Mulher, volte aqui, tô saindo, não quero estragar tua noite não.
- Não, você fica. Teu beijo é bom! Ei, loira, volta aqui, tem pras duas!
- Vai se foder.
- Poxa, mulher, eu tava achando bonito era vocês dois se beijando. Volta pra ele.
- E você, vá a merda com ele.
- Ei!
- Quê?
- Me dá um cigarro?

A loira jogou o maço meio vazio na mesa e desceu as escadas.

- E agora? Era tua namorada?
- Não, alguém que conheci aqui.
- Puxa, desculpe.
- Sem problemas. Ainda bem que ela se foi. Gostei mais de você.
- Pra casa?
- Já.

O moreno de boca bonita chegou em casa, agarrou a moça, jogou numa das camas, broxou e dormiu. Pela manhã bem cedo, abriu os olhos e se vestiu sorrindo engraçado.

- Bom dia.
- Oi.
- Preciso ir.
- Sem problemas.
- Que é isso lá embaixo? Feira? - olhando pela janela.
- Sim, domingo.
- Vamos, te pago um pastel.

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Segue Laurita, nosso texto irmão. Histórias que começam igual sempre podem ter fins diferentes! Beijos!

Pra conferir, o texto irmão está no Migraña Loco.

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A atriz



Amigo, que namorada interessante você tinha. Eu me lembro bem dos olhos enormes e castanhos dela, do jeito de atriz desengonçada, da magreza e de uma certa preguiça nos braços. Quando a conheci não consegui olhar para outra pessoa na mesa do bar. Ela tinha um cabelo liso que parecia machucar-lhe os olhos, como gravetos compridos e finos furando o cristalino. Tinha uns pés imensos, um nome de desenho e ao contrário de mim, ficava calada o tempo todo mantendo o mistério.

Na primeira noite que te beijei, sentada naquele banco de madeira machucando as pernas, a rua não me pareceu tão vazia. Eu tinha o sentimento delicado de que ela estava ali, suspensa, nos olhando. Mesmo assim, te sorri e te beijei. Ela era nossa cúmplice, e nos olhava através da noite cuidando para que nenhum mal acontecesse.

Te levei pra minha casa, e ela nos deixou quando bati a porta. Pela manhã, quando você já havia se tornado um estranho novamente, me enrolei num lençol amarelo pra te ver sair. Estranho é beijar quem importa, pensei.

- Bate a porta.

Olhei pela janela e vi teus passos lentos, sonolentos, os braços pendendo pesados ao lado do corpo. Ela, do outro lado da rua, olhou pra cima e me lançou um sorriso bobo.

No caminho de todo dia, passei a enxergá-la nas esquinas. Eu tomava um café, a moça parada me olhava na vidraça. No teatro, as atrizes pintadas se pareciam com ela. Dentro dos meus livros, eu pensava personagens para ela. Não era assim uma presença que causasse angústia. Seus olhos imensos me pareciam bonitos e me acostumei com eles.

Eu me lembro que você a deixou numa tarde esquisita, enquanto chovia e ela tentava te cobrir com um guarda-chuva azul. Foi o que contou no dia seguinte, deitado no meu sofá. Mas...quem era você sem ela?

- Bate a porta.

Filha de Oxum?

Eu não entendo nada de candomblé ou umbanda, e também não sei a diferença. Não vou falar muito sobre o que não sei, e respeito.

Hoje um senhor me abordou do nada, no meu bar de sempre, e me disse: querida, sempre te vejo por aqui, e quero te dizer uma coisa: tu é filha de Oxum.

Mas que diabos isso significa? Perguntei. Coisa boa? Ele: coisa boa e ruim, tanto como a vida, só resta aceitar e viver os dois.

Tarde da noite, estou aqui tentando entender. Achei lindo.

Oxum é a deusa das águas doces. É livre, forte. Diante da aparência segura e, esconde entranhas cheias de segredos. Esta ligada aos arquétipos de Afrodite e Artemis, à conquista, aos prazeres sexuais, ao amor intenso. Geralmente têm a feminilidade exaltada. O feminismo também. Os filhos de Oxum são amigos das festas, dos prazeres e comidas. Um filho de Oxum é imprevisível, se entedia facilmente, quer que a vida tenha sempre um sentido romântico, que flua, que siga, como um rio.

Mas tem muito mais...a mitologia é muito rica e meu sono me impede de continuar.

Ligação direta



Oi. Você está na fila? Guardado pra mim, sei. Era você que estava me olhando metade da noite? Desculpe, sou míope. É, óculos desde criancinha. Não, a noite não. Porque em vez de ver meus olhos você veria um monte de luz piscando na minha cara. Sozinha? Não, vim com uns amigos que já estão espalhados por aí. Ali, olha um. Com a cabeluda de peito grande. Nunca te vi aqui. É? Eu também, de vez em quando. Então era você, o cara da mesa cheia de mulher, olhando. Que isso, fala assim não. Verdes. Não azuis, verdes. Você também não enxerga? É, mais de perto dá pra ver. Calor, né? É, já deu a hora, vou pra casa. E você? Pra minha? Não, claro que não. Tem gente lá. E, afinal, não tenho mais vinho em casa. Você toma vinho, né? Homem que não toma é estranho. Certo. Espera, vou pagar. Quer a balinha do troco? Bem, então eu vou. Depois? Hum. Talvez. Onde? É, não parece ruim. Está bem. Te encontro ali então, embaixo da luz amarela. Não sei seu nome. Fica com o número. Até.

(...)

Alô? Sim, é ela. Ôpa...tô na cama. É, já. Esqueci de você. Sim, péssimo. Tem algo que...Alô?

(...)

Canção para desembaralhar



Hoje li que posso ser processada por postar músicas e poemas alheios no blog. Antigamente poderia escrevê-los em bilhetes e passar pelas mãos dos colegas de classe, até chegar a melhor amiga ou ao rapaz de olhos bonitos. No máximo, uma bronca de professor.

Que posso fazer? Tem coisa que certas gentes dizem tão mais bonito que eu. Quando a mente tá cheia de coisas, tudo misturado, uma tarde ouvindo poesia ajuda a desembaralhar. Hoje foi o Chico que me salvou:

Qualquer canção

Qualquer canção de amor
É uma canção de amor
Não faz brotar amor e amantes
Porém, se esta canção
Nos toca o coração
O amor brota melhor e antes

Qualquer canção de dor
Não basta a um sofredor
Nem cerze um coração rasgado
Porém ainda é melhor
Sofrer em dó menor
Do que você sofrer calado.

Qualquer canção de bem
Algum mistério tem
É o grão, é o germe, é o gen da chama
E essa canção também
Corrói, como convém,
O coração de quem não ama.

Meninos e meninas

Outro dia, à toa em casa, resolvi procurar antigos amigos de infância na Internet. Difícil recordar todos os nomes completos, mas o orkut foi ajudando...

Uma das pessoas que eu mais queria saber que fim levou era um garoto, amigo do prédio onde passei dos 4 aos 12 anos, bravo, forte, que batia em todo mundo. Não consegui encontrar de forma alguma, mesmo com o sobrenome completo. Eu lembro de ter que negociar demais com ele para que não batesse nos outros e estragasse a brincadeira. No fim, era amoroso e prestativo, sempre usando sua força a nosso favor.

Outro pessoal que eu queria ter notícias eram três irmãs que brincavam comigo, cujo pai tocava flauta doce e de longe podíamos ouvir os ensaios do último andar. Estas eu encontrei. São meninas com tantos filhos que não decorei os nomes. Estão felizes de tudo com tantas crianças, e se assustaram ao dizer que nunca pensei em filhos, afinal... sou nova demais.

Da escola, tinha saudades de uma menina chamada Roberta, e de quem não tenho mais notícias há anos. Encontrei outro dia na rua, ela morava em São Paulo hoje e me pareceu feliz. Nos perdemos novamente. É a sina.

O pior reencontro que já tive foi com um ex paquera de quando eu tinha 14 anos. Nos vimos, conversamos, e em cinco minutos ele vira pra uma amiga dele (que não sabia ser minha amiga também), e solta: nossa, mas a Cacá era tão melhor naqueles tempos!

Agora a maior surpresa que tive foi descobrir notícias de uma amiga de escola, que tinha uma letra linda, cabelos cacheados bem bonitos também, num lugar meio estranho: uma capa da Playboy antiga. Não é que a guria é um sucesso no mundo masculino?

Alicerce



Aquele meu bairro tinha umas calçadas em ziguezague bonitas, lembra? Havia pouco eu tinha voltado pra delícia de se viver no Brasil, e tudo tinha um ar de novidade. Tinha novamente a sensação de viver num mar de verde. Até você, tão antigo na minha vida, teve assim um ar fresco. Pensei com amor: por que não?

Deixei você se aproximar, tirei uns tijolos da frente dos meus olhos, e cozinhei pra você. Cuidei de alguém por algumas horas, durona que sempre fui e sou.

E aí ninguém precisou falar muito. Fica. Fico. Veja este som. É meu. Quero voltar. Volte.

Acho que a vida nos deu um parênteses naqueles primeiros meses. Ela decidiu não nos tocar. Deixou tudo fluir.

Me lembro bem quando passamos da sensação boa da calmaria do interior, pra confusão imensa da cidade grande. Era uma confusão imensa em mim, em você, no mundo inteiro.

Você acabou sendo o alicerce da minha vida adulta. Foi com você que discuti toda vez que a falta de dinheiro, o trabalho excessivo, a falta de tempo, o cansaço acabaram comigo. Quando a dúvida de saber quem eu era me jogava longe. O ciúmes da tristeza daqueles dias comendo as beiradas da gente, comendo nossas carnes, cabelos, nossas vontades e as palavras mais doces. Foi com você que dividi as contas, a cama, as roupas, os problemas, as noites nos bares, os shows de jazz. Uma brincadeira de ser adulta imensamente dolorosa.

Um dia a gente se olhou tão cansado, era um cansaço vital, de morte, todos os ossos do corpo doendo ao mesmo tempo. E o fio que ligava teus olhos escuros a mim se arrebentou numa lavanderia minúscula. Apertada. Angustiada. Cheia de roupas sujas, chão sujo, tudo quebrado, uma coisarada imensa dentro da gente quebrada.

Hoje, anos depois, quase que dá pra falar disso. Quase que dá pra lamentar. Quase que dá pra entender. Mas crescer será sempre um parto. Perder as pessoas pelo caminho também.

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Post ao som de Scofield, Frisell, Milton, Miles, Bandeira, Stone, Coltrane, Osbourne, Roland, Chico...enfim, todos os sons que, no fundo, são emprestados da tua história.

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Bom conselho



Ouça no original, música que não sai de mim:

Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio o vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade


Chico Buarque

Ouvido atento

Existem pessoas que são pura música. Umas são um violãozinho tocado sozinho, um tango, ou uma roda de samba inteira. Certa vez um querido me disse que se eu fosse um gênero, só podia ser free jazz.

Eu tô procurando uma coisa que perdi: quero achar a música que sai de dentro dos outros. Esta música que não termina, mas continua recomeçando. A gente ouve ouve e as notas bonitas continuam saindo dos dentes brancos. Pode olhar pra boca que se move e ver as tantas notas sequinhas, peneiradas, delicadas subindo ao céu.

Eu estou aqui e permaneço atenta. Já estive lá, e sei que a música existe em todos. Entretanto, são poucos e raros os sons que me fazem ficar.

Fumantes ativos e passivos do hábito




De onde saiu este, tem mais: QUADRINHOS

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O que acho legal das histórias em quadrinhos é a capacidade de resumir em uma imagem e 2 frases aquilo que eu demoraria parágrafos inteiros pra contar.

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Quando eu ainda era meio criançona, roubava cigarros acesos da mãe da minha melhor amiga. Ela era avoada, acendia e esquecia no cinzeiro queimando sozinho. A gente pegava e ia fumar no quintal. Lembro dos algodões perfumados que minha amiga mantinha em casa, para passar no rosto e mãos, tentando disfarçar o cheiro.

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Isso aí já faz uns 15 anos. E agora, pela quinquagésima vez tentando não fumar, dou de cara com estes quadrinhos bem feitos aí em cima. Estou na fase do cara enfiando o maço na boca de tanta vontade. Quero que todos os fabricantes desta merda morram lentamente.

Dramas virtuais

Há dez anos atrás sequer tínhamos computadores em casa. Hoje, metade da vida se desenrola diante das telas. Laps, celulares, palms. Blogs, sites de relacionamento, personagens virtuais, pokes. E até minha mãe me pediu estes dias para ensiná-la a usar o Twwiter, pois queria ser amiga do Ashton também.

Minha vida virtual chega a ser mais rica que a real. Dramas intensos se desenrolam, conversas de mil horas por webcam, destinos decididos. Publico verdades e mentiras, recupero amigos, arranjo casas, caronas, escrevo petições, pesquiso, me relaciono. Criamos redes de interesse, nos falamos muito.

Acho que ri mais em frente à tela, e também chorei mais, do que fora dela nestes últimos anos.

Imagino que será possível quando eu tiver uma internet rápida na tela do celular.

Algumas cartas já nascem escritas



Caro amigo,

Estou aqui a te imaginar nas tardes mornas do teu apartamento pequeno da Vila. Aquela janela fio de vida escorrendo na rua, o embaçado causado pela fumaça de cigarro esquecido no cinzeiro, e livros imensos onde você apóia os braços. Sentada na tua cama, pernas cruzadas, te olho e nada te explico. Sabe que sou muito de falar e pouco de dizer.

Quisera eu te escrever cartas, são mais permanentes. Até cafés são mais permanentes que estas conversas, apesar de esfriarem. Impermanência... Tudo facilmente "deletável". Devia escrever livros então.

Querido, você não acha que bons textos o amor ao outro tem que gerar em mim? Acho que sou capaz de amar por literatura.

Sem subterfúgios, sem exasperações. Um amor respeitável e tranqüilo, desses que o tempo passa lento ao lado. Medir um amor pelo tempo literário dele. Pelos autores lidos. Conhece-se alguém pelo que lê, não?

Aliás, deixe-me te contar. Lendo Sartre aqui, achei coisa mais bonita que o próprio livro, dentro dele. Eram dois pedacinhos de papel, um com minha inicial, e outro com outra letra, pois eu e certo rapaz estávamos lendo juntos o mesmo bonito romance. Ele e eu vivíamos meio juntos esta época, e junto de você também, naquela casa cheia de cachorras, mexericas e música. Toda a história era lenta e as tardes eram mais dorminhocas. As noites, menos. E líamos o mesmo livro enquanto o outro dormia. Líamos você, eu acho. Ele tentava me encontrar em algo que era teu. Bonito, não? Toda uma rede de poesia, romance e beleza.

Descobri que foi por ter vivido coisas tão belas assim, tantas e tantas delas, que me tornei impermeável ao amor. Eu olho para ele pensando em poesia. Eu não vivo o amor, eu o leio. E quisera eu pudesse escrevê-lo também.

Saindo de mim e olhando o amor, eu vejo que não quero nada de mais nem de menos. Porém, quero que seja natural e belo como os poemas do Pessoa que este moço lia pra mim. Amor delicado, com temperaturas. Quente da cama compartilhada, do amor bem feito, frios das manhãs de outono na rua, das noites lá fora no quintal. Amor suado de baião ou de roda de samba, cheiro de pimenta, cebola. Amor com textura de flanela, cheiro de chuva e fumaça na janela. Amor cheio de livros, que são pra mim coisas tão belas quanto as pessoas.

Quero ter todas as experiências mais bonitas e mais leves, quero mãos diferentes das minhas me mostrando partes do meu corpo que eu nem conhecia. Mãos com outras histórias de vida. Com outros cheiros. Cabelos loiros imensos, bagunçados, e cachos escuros preenchendo minhas mãos.

Mas, mais que tudo, quero ter histórias. Quero vivê-las todas tão bonitas quanto madrugadas. Voltarei pra casa sozinha e completa, as cócegas de tanta beleza explodindo em meu rosto, e serei capaz de escrever belíssimos livros.

Um grande abraço,

Da amiga,

(...)