Algumas cartas já nascem escritas



Caro amigo,

Estou aqui a te imaginar nas tardes mornas do teu apartamento pequeno da Vila. Aquela janela fio de vida escorrendo na rua, o embaçado causado pela fumaça de cigarro esquecido no cinzeiro, e livros imensos onde você apóia os braços. Sentada na tua cama, pernas cruzadas, te olho e nada te explico. Sabe que sou muito de falar e pouco de dizer.

Quisera eu te escrever cartas, são mais permanentes. Até cafés são mais permanentes que estas conversas, apesar de esfriarem. Impermanência... Tudo facilmente "deletável". Devia escrever livros então.

Querido, você não acha que bons textos o amor ao outro tem que gerar em mim? Acho que sou capaz de amar por literatura.

Sem subterfúgios, sem exasperações. Um amor respeitável e tranqüilo, desses que o tempo passa lento ao lado. Medir um amor pelo tempo literário dele. Pelos autores lidos. Conhece-se alguém pelo que lê, não?

Aliás, deixe-me te contar. Lendo Sartre aqui, achei coisa mais bonita que o próprio livro, dentro dele. Eram dois pedacinhos de papel, um com minha inicial, e outro com outra letra, pois eu e certo rapaz estávamos lendo juntos o mesmo bonito romance. Ele e eu vivíamos meio juntos esta época, e junto de você também, naquela casa cheia de cachorras, mexericas e música. Toda a história era lenta e as tardes eram mais dorminhocas. As noites, menos. E líamos o mesmo livro enquanto o outro dormia. Líamos você, eu acho. Ele tentava me encontrar em algo que era teu. Bonito, não? Toda uma rede de poesia, romance e beleza.

Descobri que foi por ter vivido coisas tão belas assim, tantas e tantas delas, que me tornei impermeável ao amor. Eu olho para ele pensando em poesia. Eu não vivo o amor, eu o leio. E quisera eu pudesse escrevê-lo também.

Saindo de mim e olhando o amor, eu vejo que não quero nada de mais nem de menos. Porém, quero que seja natural e belo como os poemas do Pessoa que este moço lia pra mim. Amor delicado, com temperaturas. Quente da cama compartilhada, do amor bem feito, frios das manhãs de outono na rua, das noites lá fora no quintal. Amor suado de baião ou de roda de samba, cheiro de pimenta, cebola. Amor com textura de flanela, cheiro de chuva e fumaça na janela. Amor cheio de livros, que são pra mim coisas tão belas quanto as pessoas.

Quero ter todas as experiências mais bonitas e mais leves, quero mãos diferentes das minhas me mostrando partes do meu corpo que eu nem conhecia. Mãos com outras histórias de vida. Com outros cheiros. Cabelos loiros imensos, bagunçados, e cachos escuros preenchendo minhas mãos.

Mas, mais que tudo, quero ter histórias. Quero vivê-las todas tão bonitas quanto madrugadas. Voltarei pra casa sozinha e completa, as cócegas de tanta beleza explodindo em meu rosto, e serei capaz de escrever belíssimos livros.

Um grande abraço,

Da amiga,

(...)

3 comentários:

migrañaloco disse...

Isso sim é história de amor.
Adorei! Beijos!

Unknown disse...

simplesmente lindo!!!!!!

Gaja disse...

Os correios registraram o recebimento de sua carta. No entanto o destinário não quis assinar o comprovante, alegou que a carta deveria ser devolvida, pois ela já fora recebida há muito tempo.

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