Alicerce



Aquele meu bairro tinha umas calçadas em ziguezague bonitas, lembra? Havia pouco eu tinha voltado pra delícia de se viver no Brasil, e tudo tinha um ar de novidade. Tinha novamente a sensação de viver num mar de verde. Até você, tão antigo na minha vida, teve assim um ar fresco. Pensei com amor: por que não?

Deixei você se aproximar, tirei uns tijolos da frente dos meus olhos, e cozinhei pra você. Cuidei de alguém por algumas horas, durona que sempre fui e sou.

E aí ninguém precisou falar muito. Fica. Fico. Veja este som. É meu. Quero voltar. Volte.

Acho que a vida nos deu um parênteses naqueles primeiros meses. Ela decidiu não nos tocar. Deixou tudo fluir.

Me lembro bem quando passamos da sensação boa da calmaria do interior, pra confusão imensa da cidade grande. Era uma confusão imensa em mim, em você, no mundo inteiro.

Você acabou sendo o alicerce da minha vida adulta. Foi com você que discuti toda vez que a falta de dinheiro, o trabalho excessivo, a falta de tempo, o cansaço acabaram comigo. Quando a dúvida de saber quem eu era me jogava longe. O ciúmes da tristeza daqueles dias comendo as beiradas da gente, comendo nossas carnes, cabelos, nossas vontades e as palavras mais doces. Foi com você que dividi as contas, a cama, as roupas, os problemas, as noites nos bares, os shows de jazz. Uma brincadeira de ser adulta imensamente dolorosa.

Um dia a gente se olhou tão cansado, era um cansaço vital, de morte, todos os ossos do corpo doendo ao mesmo tempo. E o fio que ligava teus olhos escuros a mim se arrebentou numa lavanderia minúscula. Apertada. Angustiada. Cheia de roupas sujas, chão sujo, tudo quebrado, uma coisarada imensa dentro da gente quebrada.

Hoje, anos depois, quase que dá pra falar disso. Quase que dá pra lamentar. Quase que dá pra entender. Mas crescer será sempre um parto. Perder as pessoas pelo caminho também.

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Post ao som de Scofield, Frisell, Milton, Miles, Bandeira, Stone, Coltrane, Osbourne, Roland, Chico...enfim, todos os sons que, no fundo, são emprestados da tua história.

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1 comentários:

Gabriela disse...

Belo texto Carol! Me faz refletir sobre a instancia que sao os relacionamentos humanos, tao sutis e tao tenues...

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