A atriz



Amigo, que namorada interessante você tinha. Eu me lembro bem dos olhos enormes e castanhos dela, do jeito de atriz desengonçada, da magreza e de uma certa preguiça nos braços. Quando a conheci não consegui olhar para outra pessoa na mesa do bar. Ela tinha um cabelo liso que parecia machucar-lhe os olhos, como gravetos compridos e finos furando o cristalino. Tinha uns pés imensos, um nome de desenho e ao contrário de mim, ficava calada o tempo todo mantendo o mistério.

Na primeira noite que te beijei, sentada naquele banco de madeira machucando as pernas, a rua não me pareceu tão vazia. Eu tinha o sentimento delicado de que ela estava ali, suspensa, nos olhando. Mesmo assim, te sorri e te beijei. Ela era nossa cúmplice, e nos olhava através da noite cuidando para que nenhum mal acontecesse.

Te levei pra minha casa, e ela nos deixou quando bati a porta. Pela manhã, quando você já havia se tornado um estranho novamente, me enrolei num lençol amarelo pra te ver sair. Estranho é beijar quem importa, pensei.

- Bate a porta.

Olhei pela janela e vi teus passos lentos, sonolentos, os braços pendendo pesados ao lado do corpo. Ela, do outro lado da rua, olhou pra cima e me lançou um sorriso bobo.

No caminho de todo dia, passei a enxergá-la nas esquinas. Eu tomava um café, a moça parada me olhava na vidraça. No teatro, as atrizes pintadas se pareciam com ela. Dentro dos meus livros, eu pensava personagens para ela. Não era assim uma presença que causasse angústia. Seus olhos imensos me pareciam bonitos e me acostumei com eles.

Eu me lembro que você a deixou numa tarde esquisita, enquanto chovia e ela tentava te cobrir com um guarda-chuva azul. Foi o que contou no dia seguinte, deitado no meu sofá. Mas...quem era você sem ela?

- Bate a porta.

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