Flores que brotam do cimento




Eu sinto uma certa pena daqueles que, por descaso ou falta de sorte, não conhecem a vida através da arte. Esta sensação não parte de um certo elitismo de gosto, proveniente da arte como distinção social. Ela vem da certeza de que, como diz Drummond, a arte é um dos grandes consolos da vida diante da precariedade de nossa condição.

Eu nunca fui muito exposta à outra arte que não a literatura até a adolescência. Uma pena. Vejo estas famílias onde você já nasce musical, a mãe cozinhando no fogão e cantando hinos alto pelos corredores, o pai com aquela vitrola velha empoeirada e os álbuns espalhados pela sala, as crianças ganhando violõezinhos aos quatro anos. A família forma uma banda de brincadeira, sempre tem um pandeiro em algum canto da casa - para as festas. Se assiste feliz às primeiras e graciosas incursões dos pequenos aos lás e si bemóis.

Em contato com a arte, se aprende a ver a vida com a cor dos livros, o som das notas, o cheiro dos sebos, o barulho da agulha riscando o vinil. Uma manhã não é mais somente uma manhã, mas um belo Monet. Uma festa no quintal é um samba do Baden. Um amor não correspondido é a angústia graciliana, uma viagem pra Minas é a estrada de ferro do Milton.

Tem um autor tcheco que diz que a literatura e a música são universais porque expressam possibilidade humanas. Elas são obviamente também frutos de seu tempo, mas esta universalidade existe e a podemos sentir lendo, ouvindo, admirando arte feita em qualquer época, aqui e agora.

Não quero terminar um bom livro, quero tocar cada palavra com meus dedos e quero sentir uma a uma tornando-se parte de mim. Quero ouvir o Baden tocando até amanhã cedo, a mesma música se misturando com a chuva e depois com o sol, com a manhã e a tarde descendo e cortando tudo, como este violão me parte em mil, mil vezes seguidas, mil vezes tocadas estas mesmas cordas. Quero ouvi-lo até que eu não saiba mais o que é que ele tocou e o que foi que eu vivi.

Pobre daquele que não consegue enxergar a vida através da arte, e que não entende o papel dos artistas. Eles são nossa salvação diante do cimento da vida.


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Ao som do álbum De Baden para Vinicius, de 1981. Mais especificamente, "Se todos fossem iguais a você".

A foto é da artista Dayene Mari. Vai lá.

5 comentários:

Anônimo disse...

... e assim se explica a paixão pelos artistas. Eu acho mais do que certo!
:o)
Beijo, e uma ótima semana!

Anônimo disse...

bem-aventurados são os sensíveis corações que carregam a percepção. A música, a leitura, a poesia, a arte no geral, transportam ao mundo das sensações...
Pois bem, o artista, esse sim, pobre coitado, muito sofre até a concepção de um verso, de uma nota, de uma tela a óleo... Esse sim, pobre coitado, é predestinado a sentir(como diz o ditado: “ nascuntur poetae, fiunts oratores”), muitas vezes uma melancolia que nem dele é... e sim da arte que expele naquele momento...
Que sejam felizes aqueles que lêem que vêem que cantam... Pois essa felicidade que alimenta o artista, que alimenta a alma e principalmente que alimenta a arte. Quanto mais pessoas tiverem contato com a arte, mais a arte crescerá.

Lidyanne disse...

amem!

Anônimo disse...

Realmente!!!
As vezes buscamos a cultura pelo teatros, palcos e cenários montados, mas a arte se expressa em várias facetas da vida. A arte como fonte de vida está expressa na simplicidade aconchegante do lar, dos quintais, nas canções, na expontaneidade das palavras, etc. O que falta não é só o incentivo a arte por sí só, mas desbravamento das fronteiras do ser. Olhem pra dentro de si e descobrirão a arte, que almeja transpassar o cimento enraizado na mediocridade e leviandade.

Anônimo disse...

Ainda hoje, discutia, com meus alunos, qual papel que a arte exerce em nossas vidas, e tive uma resposta como algo escrito por essa menina Madalena, que é dar cores ao nosso imaginar, é tocar cada palavra com os dedos, é não querer parar. Pedi que acessassem...Usamos o Blog nas aulas de redação...LOL
HUGS, Madalena.

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