Dois rios




Sorocaba, abril de 2008.


Em mais uma noite quente, abri a janela pra sentir o vento entrar. Sentada na frente de um computador, lia à toa e conversava com um amigo. Moro num quarto pequeno, então olhando pra direita vejo minhas estantes entulhadas de livros deitados, de pé, empilhados, separados, virgens de leitura, escondidos, lidos, relidos, devorados. Enquanto falava com este amigo, olhei para o lado e vi meu livro fundamental. Explico.

Livro fundamental é aquela brochura que durante o período de nossa formação (que talvez dure a vida inteira), adquire uma importância tão gigantesca, que nos pegamos de amor físico-intelectual por ele. Clarice Lispector diz que existe um defeito que nos sustenta, mas eu também acho que existem livros que nos põe de pé.

O meu eu descobri lá pelos dezesseis anos. Ganhei por acaso, e em mais um dia entediante de aulas de física, enfiei o volume novo na mochila. A Insustentável Leveza do Ser, de um autor que eu nem sabia de onde era, Milan Kundera. Eu estranhei o começo falando de Nietzchie, do eterno retorno, das confusões de Parmênides. Uma professora me viu com ele nas mãos, e me aconselhou a esperar crescer para entender.

Eu não acredito que nos tornamos o que lemos, mas que temos em nós algo incipiente e mal compreendido, um turbilhão de sentires bons e ruins, que às vezes por uma coincidência bonita já foi imaginado por outra pessoa. Kundera, este senhor tcheco radicado na França, me entendia sem nunca termos sido apresentados.

Eu carreguei o volume azul de letras douradas comigo para todas as cidades que morei, todas as viagens longas que fiz, as escolas. Eu falei do livro e de seu personagens para todas as pessoas para as quais eu queria mostrar quem eu realmente era. Eu aconselhava a leitura aos namorados, para que me entendessem. Nunca nenhum terminou a obra; sempre se diziam temerosos.

Ora compreendia Tereza, ora me compadecia de Sabina. Tomas, tão massacrado, para mim era um homem terno, confuso e perfeitamente perdoável. Até mesmo Frank na sua simplicidade me deixou encantada uma época. Li Kundera mil vezes. Li todos os seus livros, algumas vezes. Pesquisei sobre ele. Li seus ensaios.

Eu tinha uma coisa com este livro tão absurda, que nunca o emprestei para ninguém. Se alguém o leu, foi em minhas mãos.

Há algumas semanas, ao olhar meu amigo do outro lado da tela a partir da minha cadeira de computador desconfortável, tive a sensação que o romance e ele eram muito parecidos. Ambos eram livros fundamentais na minha vida.

Peguei o volume nas mãos, estava gasto. Quase não se lia o nome em letras douradas. Grifos de todo tipo, comentários percorrendo as páginas cujas palavras decorei sujavam as bordas. Ri. Olhei pela última vez. Ele já não me pertencia.

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Rio de Janeiro, abril de 2008.

Esgotado por ter acabado de carregar partes de um armário até seu apartamento, ouviu a campanhia que lhe provocou preguiça. Imaginou ter esquecido algum pedaço do armário no meio do caminho. Abriu a porta e de fato o zelador trazia algo consigo. Era um envelope dos correios. Estranhou e duvidou que a correspondência seria para ele, afinal, mudara há menos de duas semanas, e não lembrava de ter passado o endereço a alguém e nem de ter feito nenhuma compra virtual.

Era um livro, soube antes de abrir. Ah sim... agora já podia adivinhar. Um livro, isso o fez lembrar da promessa de sua amiga em mandar um presente especial (ou uma bobagem, como ela havia dito, apesar de ele saber que deveria ser algo especial).

Não era muito fácil ler o título, daqueles escritos em dourado, mas cujo tempo o transformavam em registro rupestres. Foi lendo simultaneamente o título do livro e as diversas marcações feitas a lápis. Isso o impediu de achar que era um livro comprado para ele. Não era o caso. Porque não era de um livro exatamente que se tratava o presente. Era de algo que habita o espaço entre o livro e a leitura. Não a leitura abstrata, mas a leitura de alguém.

Folheou o livro para confirmar. De fato, era o livro da leitura que tinha em mente. Se os autores têm seus bildungsroman, os romances de formação, os leitores também os têm. Ele havia ganhado um. Não pode refletir muito sobre isso, pois havia perdido muito tempo subindo os pedaços de armário, e já estava atrasado para a palestra que deveria ir.

Já era noite, e já estava no apartamento há algum tempo, quando acendeu um cigarro, novo hábito que buscou para garantir um período de ócio. Colocou para tocar o vinil à espera. Estava pronto, assim, para voltar a atenção ao seu presente. Folheou com mais calma. Olhou novamente algumas anotações no livro. E um sentimento veio que o obrigou a afirmar para si mesmo que não era um livro dado, mas emprestado. Sentiu-se aliviado, mas por pouco tempo. Claramente não se tratava de um empréstimo. Não via então uma solução para essa sensação estranha de receber um pedaço de alguém. Era como ele o tivesse roubado. Temeu ter roubado a própria lembrança, a própria leitura de sua amiga. Solenemente, em respeito à memória da leitura, começou a ler.

2 comentários:

Rafael Calvin disse...

Simplesmente lindo o texto! Eu estou com esse livro... e estou lendo!
Beijos
Calvin

Doralice disse...

Lindas fotos Madalena. Você mesma as tirou?
Obrigado pelo comentário no meu Blog. Fico feliz que alguém o tenha lido... achei que eu fosse o único. Abraços. Ricardo.

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