Dia azul



Um dia, você é uma moça de olhos azuis cor de água, passeando com suas irmãs na rua, e vê um rapaz de olhos azuis cor do céu pela primeira vez. Dali sessenta anos, você, sentada em uma cadeira de rodas, olha para ele pela última vez, mas ele está de olhos fechados. Ao seu lado, todos os filhos, netos e bisnetos que vocês fizeram.

O momento da morte une as pessoas ao redor da única coisa que importa: estar vivo. Não importa o que aconteceu mais, todos estão juntos. Cantam-se canções antigas, velhinhas lembrando rezadeiras de fazenda se reúnem para que a pessoa vá em paz.

Comenta-se o que aconteceu de bom e ruim. Chora-se pelo que foi e por quem fica. Pelo que foi dito, feito, e pelo que nunca foi também. Aquela pessoa com quem brigou há quase trinta anos e nunca mais falou, te carrega em procissão.

Ninguém esperava que um dia tão azul e tão triste pudesse unir a todos da forma como uniu.

Vô, vamos usar sua laje sim, onde vc até dois dias atrás estava pendurado mexendo em cimento, ativo de tal forma que nos deixava preocupados. Vamos fazer grandes reuniões, enormes, cheias de gente, crianças gritando e dando risada. Da morte, sai-de com a sensação que é preciso recomeçar. Você recomeça, e nós também.

Olhos cor de laranja

O fogo é coisa pra se olhar por horas. Ele começa alto, barulhento, cheirando calor. É de não poder mais parar de olhar.

- Moça, posso sentar aqui?
- Claro.
- Sou Luís, e você?
- Joana. E estou com alguém.
- Ah sim, como não, me desculpe. Se quiser eu saio.
- Não se preocupe, ele é um babaca. Pode ficar.
- Não gosto de confusão pro meu lado, você entende. Vai que o homem é destes que não pode ver a mulher falando com outro que já quer briga...
- Não se preocupe, como já falei, ele é um babaca.
- É, moça, só pode ser, pois você está aqui fora tão sozinha quanto o fogo.
- Vixe, você é poeta. Bonito isso aí que você disse.
- Eu estou é meio comovido de te ver laranja da cor do fogo. Teus olhos azuis estão vermelhos.
- Andei fumando, querido. E eles devem estar vermelhos da raiva também.
- Ih, moça, com raiva? Devia dançar. Mas um xotezinho não, que dá tristeza.

Quando tudo se apaga

Limpo, limpo, meu corpo está limpo. Foi lavado, penteado, arrumado. Roupa nova, lençol novo, o velho quarto e os velhos pensamentos. Eu me mudo, eu mudo tudo em mim, e me carrego pra onde quer que eu vá.

Querendo resolver as coisas, perco tempo de viver. Eu vou é tentar aprender com elas, e as amar, e as compreender, e tirar alguma lição pra mim.

Hoje eu fecho um ciclo de amor, de amizade, mas eu serei sempre esta aqui. Sempre inventando novidades pra aquecer meu coração e ocupar minha mente, sempre seguindo, sem olhar tanto pra trás.

Na ânsia de viver demais, de viver tudo, eu não me vivo. Eu preciso ficar em silêncio, pegar a bicicleta e andar por aí sem ouvir música.

Quem é que fica, depois que tudo se apaga? Fica eu, ficam minhas memórias, muita gente que ganhei pelo caminho, muitas saudades. E fico eu, sempre eu, quem pra sempre vou levar ao meu lado, pra me apoiar e dizer que, claro, vai ficar tudo bem.

Descobrindo Deus



Bem no meio da noite, quando as estrelas já estão baixas, mas o sol ainda não começou a esquentar o mundo, me pego lendo todas as letras do Milton. Eu tinha uma resistência imensa a gostar dele. Ouvia sua voz delicada e dizia não me agradar. Insistiram. Eu neguei.

Um dia, me deu saudade de ouvir uma música simples, visceral, verdadeira. E lembrei de um álbum, o Clube da Esquina. Parei para ouvir uma, duas, mil vezes seguidas, como uma livro lido e relido. Foi ali que fui finalmente apresentada à voz do Milton, que é única. Sei que estou sendo infelizmente redundante, mas é o que sinto. E este caráter de singularidade me impedia de amá-lo.

Eu ouvi o mineiro até cansar a todos. Ouvi tudo que pude. Seus versos eram tão bonitos e sua tristeza tão verdadeira, seu amor tão sofrido. Uma incrível densidade em poucos versos. Parceiros incríveis, sempre homenageados por uma interpretação perfeita.

Ele gravou canções de folia de reis.

Milton me faz sorrir e chorar junto. O sorriso é encantamento, o choro sou eu vazando diante de tanta Beleza. Tem muita coisa dele que me deixa assim, mas nada é melhor que Travessia.

Os acordes ressoam dentro de mim de uma forma tão pesada, cada um deles, que só de escrever sobre esta música, tenho que parar para ouvi-la. Ela é tão linda, que quase chego a acreditar que Deus existe.

Amar



Eu nunca uso poemas aqui nestes textos. Hoje, este aqui não me saía da cabeça, e resolvi compartilhar com vocês antes de escrever.

Amar

Que pode uma criatura senão,
senão entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos, sempre Carlos, Drummond.

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Eu sinto falta demais de poesia na vida. Não sei se sou eu, ou meus olhos que amam. Mas eu amo sempre. Eu amo o futuro. Amo o que ainda não veio. Amo a possibilidade de amar.

Eu leio as coisas dos outros quando não consigo viver a própria poesia nas ruas. Eu me tranco neste quarto branco e cheio de santos marrons e leio, leio tudo o que posso, muitos livros ao mesmo tempo. Quero sugar pra dentro da minha própria história um pouco mais que beijos noturnos, um pouco além de palavras soltas, o Outro que nem conheço. Eu sugo o amor do Drummond, todo simples e levemente pornográfico. Eu janto o amor de Ka por Ípek, impossível, mórbido. Graciliano que ama uma mulher vendida. Thomas que não ama nada. Sartre que nem sequer suspira.

Eu engulo suas palavras como consolo, por não amar, por ter esquecido como é amar, por ter duvidado do amor.

O corpo se projeta no Outro. O corpo se projeta para o Outro. Eu acordo, me alimento, me banho, me mantenho viva por amor. O corpo só se realiza no amor. Toda a festa, primordial e necessária, se faz real no amor.

Enquanto não ama, um corpo é espera. É só um suporte, um castiçal, um vaso, guardando flores e fogo, enquanto o amor não chega.