O inverno é uma foto na parede


Que esquisito ter saudades do inverno em pleno verão sorocabano. Ontem passei o dia pensando na neve, uma vontade de afundar os pés na lama gelada, em ver as pessoas de casacos pesados andando rápido nas ruas. O inverno que estou falando é o que conheci no Quebéc, o do frio paradoxalmente desolador, cinza, violento, e ao mesmo tempo delicado, forte, colorido. É dele que eu estava com saudades.

Eu me lembro do primeiro dia que senti a temperatura a menos de dez graus negativos. Eu só conseguia pensar: este é um país branco. Com o tempo passei a achar tudo mais colorido, andando pelas ruas velhas da cidade, vendo gente falando em todas as línguas, tendo amigos com sotaques difíceis e histórias incríveis.

Lembro de um cara da Espanha, chamava-se José (falado com "r" no lugar do "j"), que eu conheci em uma aula de Política. Ele gostava de inventar mentiras, e isso me divertia. Em um mês, José tinha uma namorada japonesa, terminou, saiu de casa sem uma roupa na mochila, passou duas noites em um abrigo para homeless, fez as pazes com o pai e recuperou o laptop roubado no metrô. Tudo invenção. E ele falava 5 línguas (isso eu vi, de perto), e me levava no Mc Donalds toda quarta-feira para almoçar. Sem contar que ele estava bem perto do atentado terrorista que aconteceu em Madrid, quando alguma coisa do metrô explodiu e vários prédios se estilhaçaram pelos arredores. Ele mostrava as cicatrizes dos vidros, e contava que viu pessoas sem pedaços dos corpos. Ele contava com gosto suas mentiras.

Tive outro amigo, um completo nerd cujo nome me esqueci, de olhos imensamente azuis e uma gagueira trágica. Este cara mantinha dois computadores em casa, um para filtrar os hackers, e outro para visitantes como eu. Fora o laptop que carregava consigo todo o tempo. O filtro computacional mágico ele deixava ligado, mas dentro do seu armário. Tinha muito medo que alguém descobrisse seus segredos. Depois de algum tempo, fui saber que as tais coisas que ninguém podia saber eram mais simples: tinha sido um menino muito rejeitado na adolescência, que chegou a carregar uma arma para a escola querendo matar os colegas, mas desistiu no meio do caminho. Era homossexual e não sabia. Fui a primeira pessoa para quem ele contou isso na vida, sentados num banco feio, num parque meio abandonado, congelando de frio.

Dos meus amigos mais estranhos, tem um com quem falo até hoje quase todos os dias. O conheci quando dançava música indiana em uma feira com seus amigos, e fiquei fotografando a dança mais enérgica e bonita que conheci. Seu nome já estava ocidentalizado, Rikki, mas eu preferia o nome original: Randeep. Este meu amigo foi a vergonha das patricinhas brasileiras com quem eu andei por um tempo. A gente ia nas festas e eu já ficava radiante de vê-lo com todos os seus amigos indianos mal vestidos, engraçados, felizes de tanto dançar. Minhas colegas suspiravam na vergonha. Então larguei as meninas pra trás e passei a me divertir com seu jeito de conquistador barato, sua tentativa de amenizar o sotaque forte, a mania por todo tipo de cremes, por organização na casa, os ternos brancos que ele usava e meu copo de vodcran sempre cheio (uma bebida vermelha a base de suco de cranberries e vodka).

Ainda bem, porque foi uma das melhores experiências da minha vida conhecer mais sobre aquele rapaz. Nem estou falando do fato de ter acabado saindo com ele literalmente algumas vezes, mas das conversas estranhas que tivemos, dos lugares mais estranhos ainda que ele me levou, e da cena impagável de eu vestida com um lenço rosa choque todo brilhante na cabeça, enquanto entrava descalça para conhecer seu templo e comer com as mãos sua comida sagrada.

Acho que toda a saudade que eu sinto, personifico no inverno. Todas as pessoas que minha liberdade de ser estrangeira num lugar novo me permitiram conhecer e descobrir estão marcadas em mim, como anjos na neve.

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