Deságua



Sentada no chão gelado, úmido ainda da última chuva, conversava amenidades na fila do teatro com uma amiga. A peça era de uma companhia de São Paulo, e a fila descia toda a rua, imensa. Casais, grupos de jovens novinhos, atores, músicos passavam. O tempo escuro, anunciando tempestade, criava um clima triste e gentil. Falávamos pouco e baixo.

Olhei longe, distraída. Pensei ter visto o velho carro cruzar a rua. Nosso velho carro azul. Sacudi a cabeça – bobeira. Aquele lugar tinha sido tantas vezes nosso, sempre os dois sentados naquela pedra fria, esperando. O tempo cinza, a umidade, o cheiro de mato e água, tudo aquilo junto estava me trazendo lembranças involuntárias tuas. Chuva, teatro, poesia e fantasia sempre seriam você e eu para mim.

Levanto, a fila faz menção de andar. E, neste momento, vejo teu andar conhecido subindo a rua. É você, sem dúvidas. O mesmo par de óculos, as mesmas mãos grandes e o andar de quem não tem pressa. No momento imediato que te vejo, todo meu corpo se retesa. Uma tensão delicada me invade, entrelaço meus dedos. Minha respiração fica presa e meus olhos umedecem, secam, umedecem. Você vem subindo lento e me vê. É o velho sorriso que te sobe aos lábios. Você pára no meio fio a minha frente. Teus olhos por trás das lentes me olham por dentro. Dez centímetros e muitos anos nos separam. Minha face queima penetrada por tanta história viva, revivida, ali, em dez segundos. Não falamos nada. Sorrimos. Não há nada para ser falado. Não há abraço, não há um cumprimento. Há um olhar absoluto. Uma atenção absoluta. A atenção tão reclamada pela meditação: um estar presente perfeito. Um sorrir se contendo para não ser derramado por palavras desnecessárias. Um sorrir sem dentes e sem palavras.

De repente, uma chuva imensa derruba o céu. Tanta água desaba em mim e tanto riso. Não há tempo para nada. Corro como correm todos, desordenadamente, em direção à marquise do teatro. As pessoas riem, se olham. Molhada, estranha, silenciosa, olho ao redor e te procuro. Você não está mais ali. De longe, te vejo descer a rua com calma embaixo da chuva.

Sinto meu corpo acompanhando os outros, entrando no teatro, sentando na poltrona. Já consigo ouvir a trovoada dentro de mim se transformando numa chuva fininha e bonita.

Respiro devagar: sei que é preciso ter coração ainda amanhã cedo. Aprendi com você a tomar banho de chuva e a viver pela beleza.

Tanta beleza, tanta, e é tanta até hoje, que haja força, amigo. É preciso ser forte para não se derramar.

2 comentários:

migrañaloco disse...

noooossaaaa! essa veio do fundo d'alma hein!! lindo so much! rs..
como sempre, parabéns baby!

Gabi Santos disse...

maravilhoso! senti a chuva dentro de mim! Belissimo, de uma sutileza que emociona! Parabens!
Beijos, Gabi

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