Como fazemos as escolhas que mudam nossas vidas



Parece que foi ontem, inútil dizer, pois qualquer passado é ontem. Foi mesmo. Ontem, há 10 anos atrás.

Meu plano havia dado certo. Um ano de cursinho me garantiria mais um ano com o homem que eu não queria largar. Aulas pesadas, músicas bobas, e o café com cigarros parecendo mais interessante lá fora. O bairro era lindo, todo cheio de sombras e calçadas largas, boas pra se sentar no chão às oito horas de uma manhã friazinha pra ver o dia começar.

O tal homem era excelente companhia e melhor ainda namorado. Muita delicadeza, estranheza, muita música e muita poesia. Tudo do melhor misturado em uma pessoa doce, branca, de grandes olhos pretos e cabelos desalinhados bonitos. Tranquilidade nos gestos e nos olhos. Eu, toda agitada, o contraponto perfeito. A terra e o fogo. Há alguns anos a gestação de um "felizes para sempre" já parecia natural. Em comum, o gosto pelos livros e a certeza que de iríamos embora no final do ano. Eu, querendo ir pra faculdade estudar literatura, e ele, psicologia.

Os dias corriam simples, quando o outono e o outro chegaram. Em alguma aula chata de química, recostei na cadeira e olhei pra trás. Menino novo. Cabelos que ele mesmo devia cortar, compridos pelos ombros. Camisa branca totalmente puída, chinelos no chão e pés descalços em cima da cadeira. Olhos xavantes rasgando o rosto me encararam firmemente, sem sorrisos.

Caramba. Quem diabos é o indiozinho lá atrás?

No primeiro intervalo fui eu mesma perguntar. Qual seu nome? Completamente mau-humorado, me disse que não era do tipo que fazia amizades. E não me deu um nome, mas um apelido. Gente ruim é desafio, pensei. Não tolero gente que fica no canto da sala, quieta. Eu sempre vou lá e, quando não tomo na cabeça, arranjo um novo amigo.

Nos próximos dias, eu o segui. Não entrava na sala, eu também não. Estava implicada com o menino. Me dá um cigarro? Sim, como não. Que você quer fazer? Sociais, disse ele. Que é isso? E me deu umas coisas pra ler. Não era muito de falar de si, mas falava demais sobre tudo. Era brilhante, crítico, vivo. Seu mau humor era uma revolta mau canalizada. Perdoei.

E assim o tempo passava. Matei todas as aulas possíveis para ficar perto dele. O namorado de vez em quando saía, bebia água, me olhava...mas não podia fazer nada. Eu precisava daquilo e nunca negociaria meu direito a conhecer, conversar ou passar horas com os olhos grudados na boca do outro. Foi a única pessoa que conseguiu confundir minha cabeça, disparar meu coração e atrapalhar tudo, em anos de grande amor e cegueira. Mas, nunca me deu muita corda. Respeitava o outro, e era seguro de si demais. Protegido de si e dos outros num muro imenso.

Depois de alguns meses, olhei o namorado ainda ali. Não é que este menino era querido demais e não queria perdê-lo? Resolvi voltar às aulas.

O indiozinho abandonou a escola precisando criar um filho. Eu, não saí incólume. Mudei meu "xis" na ficha de inscrição para Ciências Sociais.

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Ele nunca cursou Sociais. Virou cantor de uma banda de punk rock que faz algum sucesso. Conheci seu filho por foto, ao visitar um apartamento quando procurava casa para morar em São Paulo. Sorri sozinha no quarto da menina, ao reconhecer o garoto na foto. Qual o nome da criança, perguntei à mãe. Ernesto. Ernesto!

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Essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais terá sido mera coincidência.

1 comentários:

Cesar Maximiano Duarte disse...

Mera coincidência detectada

:-D

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